A infância é um baú de palavras
Por Clara Cruz
Você já reparou que a palavra criança tem a mesma origem de criação?
Essa semelhança evidencia a criatividade que irradia de ser criança. Mas, depois de termos sido criados, não deixamos de criar. É o que desejo propor aqui: a compreensão do conceito de criança não como um período da vida, mas como um espaço de intimidade do sujeito consigo mesmo, que pode durar a vida inteira.
criança:
criatura que cria e é criada,
e nunca é terminada,
pois continua a exercer seus efeitos vida afora
sussurando novidades e invenções
nos ouvidos do adulto que lhe sucede,
fiel companheira.
E o que é um adulto?
“Adulto” vem do latim adultus, que significa, simplesmente: aquele que foi nutrido e por isso cresceu. A partir daí, podemos pensar que estar sendo nutrido (ser criança) e ter sido nutrido (ser adulto) mantêm entre si não uma relação de separação, mas de continuidade.
Por isso é legítimo dizer que um adulto criativo é aquele que não rompe o laço com a criança que foi, senão que lhe dá prosseguimento. Aquele que sabe, em seu íntimo, que a criança não foi, ela é: não apenas uma caixa de lembranças, mas um permanente laboratório de ideias.
Infância: origem da palavra
A palavra infância nasceu do latim: infantia. Essa origem revela algo importante, porém despercebido: ao longo da História, os infans (crianças) eram aqueles que falavam, mas, por serem pequenos, não eram considerados habilitados para testemunhar nos tribunais. Infans significa ‘o que não se pode valer de sua palavra para dar testemunho’.
E por que um adulto não deveria confiar no que é dito por uma criança? Por que sua fala costuma ser ignorada ou menos valorizada?
Seguindo as ideias de Freud, podemos arriscar: o que se pensa e fala na in-fancia (quando “não se fala”) parece revelar de nós mesmos muito mais que aquilo que é dito no período de fancia (“fala”). Pois essa fala balbuciada, tímida, pouco convicta de si – essa voz baixa – expõe nossas coisas mais íntimas.
Nosso in-consciente é nossa in-fancia. E às vezes, preferimos não saber aquilo que está inconsciente. Mas é bom lembrar que muitas das nossas verdades, geralmente as maiores, é ali que se encontram. Afinal, fala-se sim, e muito, na infância. A principal diferença entre o que falamos ali e na “vida adulta” parece residir em algo fora do nosso controle: a importância que sentimos que os outros dão ao que dizemos e o medo de que condenem o que dizemos.
Quando sentimos que não estamos sendo devidamente ouvidos, ou não encontramos ocasião para expressar o que desejaríamos (os segredos “cabeludos” habitam-nos desde sempre!), acabamos reprimindo muitas falas e pensamentos e colocando-os em um “baú emocional”. É assim que se produz o in-consciente.
Desse modo, crianças e adultos não seriam tão diferentes: o medo e a angústia acontecem com todo mundo. Medo de sermos ignorados, de que não nos deem atenção, ou de “falar alguma besteira”. Angústia por desejar ardentemente verbalizar algo, sem poder fazê-lo. São sensações fortes que não têm idade para surgir ou desaparecer. Mas convém dizer que nunca é tarde para vencermos medo, angústia ou seja lá o que for . Sempre é tempo de enfrentar nossos dragões. E chega um dia em que nossos dentes serão mais afiados que os deles: eles é que terão medo de nós.
Ressignificar a infância
É preciso reinventar um significado para a infância.
Resgatar a criança que fala e brinca dentro dessa palavra muda.
Mudá-la de muda para falante. Escutar a não-fala falar…
Vamos desemudecer a infância?
Podemos começar por criar-lhe uma nova palavra:
verafância, idade da fala verdadeira.
Obs.: Falar de psicanálise é falar da infância, o berço da nossa personalidade.
Leitura de apoio:
(1) Dicionário de Verbetes do Gestrado – Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (UFMG).
(2) Origem da palavra.