A fase pré-edipiana: a iniciação da menina na sexualidade

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O texto a seguir foi escrito em 2016 e contou com a orientação da psicanalista Eneida Medeiros Santos. Foi publicado na ata de trabalhos do 1º semestre de 2016 dos alunos do CPOL (Curso de Psicanálise da Orientação Lacaniana), da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-SC), turma 2016-2018.

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Este trabalho pretende explorar o tema da sexualidade feminina em Freud, especificamente a fase pré-edipiana, com base no artigo Sexualidade feminina (1931) e na conferência Feminilidade (1932). A fase pré-edipiana, período precoce da sexualidade feminina, desperta-me o maior interesse, sobretudo por se tratar de um conceito de que no senso-comum nem se suspeita, e muito inovador mesmo para a psicanálise. Tanto na cultura ocidental em geral quanto na psicanálise, o Édipo é a fase mais conhecida e, de uma maneira muito bonita, em seu texto de 1931, Freud diz: Nossa compreensão interna dessa fase primitiva, pré-edipiana, nas meninas, nos chega como uma surpresa (Freud, 1931, p. 234). A escolha do tema é fruto de uma identificação com esse sentimento de Freud.

No artigo citado acima, ao relatar as observações que fez de mulheres não comprometidas pela neurose, o autor menciona dois fatos que o impressionaram em especial. O primeiro foi que onde a ligação da mulher com o pai era particularmente intensa, a análise revelava que antes dessa fase houvera outra, de ligação exclusiva à mãe, igualmente intensa e apaixonada. O segundo fato foi que a duração dessa ligação à mãe também fora notável: às vezes estendendo-se até os 5 anos de idade, abrangera, em muito, a parte mais longa da primeira onda da sexualidade (Freud, pp. 233-234).

Para circunscrever a fase pré-edipiana, Freud inicia o 3º capítulo de Sexualidade feminina com uma pergunta muito precisa: o que é que a menina exige da mãe? Pergunta intrigante, pois nela parece ressoar a questão que os parceiros amorosos costumam dirigir uns aos outros: mas afinal, o que esperas de mim? O que queres que eu faça? O autor se questiona qual é a natureza dos objetivos sexuais da menina em relação à mãe nesse período precoce do desenvolvimento da sexualidade. Assevera que os objetivos são tanto ativos quanto passivos e são determinados pelas fases libidinais que a criança vivencia (Freud, p. 244). Passo agora a uma sucinta articulação entre tais fases e as relações libidinais da menina com a mãe.

Durante a fase oral, época da amamentação e desmame, surgem na menina desejos orais agressivos e sádicos: morder, rasgar, devorar o seio e o objeto materno como um todo. São desejos muito ambivalentes, provavelmente em função do próprio evento do desmame, que por si só gera muita angústia e raiva na criança. A menina deseja comer a mãe, de quem recebe seu alimento, e nunca perder o seio. No entanto, esses impulsos muito em seguida sucumbem a uma repressão precoce que os transforma em um temor de ser morta ou devorada pela mãe - um mecanismo de projeção favorecido pela pouca idade da organização psíquica infantil (Freud, pp. 235 e 245).

Para compreender os impulsos libidinais da menina em relação à mãe na fase anal, Freud recorreu às contribuições de sua colega psicanalista Ruth Mack Brunswick, que observou que a angústia desencadeada na criança pelas lavagens retais feitas pela mãe (àquela época, anos 1930) deveria ser entendida como a transformação de um desejo de agressão que fora despertado. Freud concorda e prossegue essa linha de pensamento, afirmando que, na fase anal, pelo fato de a menina experimentar uma excitação anal muito intensa e ao mesmo tempo passiva (ser limpa e manipulada pela mãe), advém um desejo muito forte de agressão à mãe. Este se manifestaria tanto diretamente, como raiva, quanto de forma reprimida, como angústia (Freud, p. 246).

Ao adentrar na descrição da fase fálica da menina, Freud distingue duas classes de impulsos que esta dirige à mãe: os passivos e os ativos. Sobre os primeiros, menciona que é muito comum que as meninas se sintam seduzidas por suas mães. E isso é devido ao fato de que geralmente é delas que recebem suas primeiras e mais fortes sensações genitais, em função dos cuidados com a higiene (troca de fraldas, banhos etc.) O autor é pontual ao afirmar que, dessa maneira, a mãe inevitavelmente inicia a filha na fase fálica, isto é, fase em que entrará em contato com a excitação de seus órgãos genitais - o clitóris em especial e, em alguns casos, também a vagina. Assim, é através do toque da mãe que as meninas experimentam suas primeiras sensações de prazer genital (Freud, 1931, p. 246; 1932, p. 121).

Quanto aos impulsos ativos da fase fálica, Freud os descreve como intensos desejos direcionados à mãe, que se corporificam sob a forma de impulsos clitoridianos e, às vezes, também vaginais, e culminam na masturbação do clitóris. Até o momento de escrita do artigo, o autor não conseguira delinear qual seria o objetivo sexual da menina em relação à mãe, mas afirma que este torna-se claro quando chega um novo bebê: ela deseja acreditar que o filho é fruto de seu vínculo com a mãe, como se a tivesse engravidado. Também anseia ter da mãe um bebê, engravidar dela, no que se evidencia, ainda que de modo muito inconsciente, um desejo de se relacionar sexualmente com ela (Freud, 1931, p. 247; 1932, p. 120).

É interessante notar, com Freud, que o período pré-edipiano é uma fase em que a menina vive uma verdadeira paixão pela mãe, e nessa paixão se solidificam as principais tendências afetivas que a mulher reproduz ao longo da vida, reeditando a relação com a mãe a cada nova relação amorosa que vem a estabelecer. E desperta-me curiosidade que uma fase assim tão precoce e determinante para a vida sexual da mulher - a que o autor denominou poeticamente a pré-história da mulher (Freud, 1932, p. 130) - tenha ficado de fora do que se conhece popularmente da psicanálise, dando lugar à rivalidade entre filha e mãe, mais própria do período edipiano. É provável que o machismo estrutural que ainda vivemos na contemporaneidade, que naturaliza e estimula a rivalidade entre as mulheres, tenha exercido sua influência nesse aspecto.

Ao abordar a conclusão da fase pré-edipiana, momento no qual a menina se afasta da mãe, Freud elenca uma série de motivos para que ela ocorra. Atribui à menina as seguintes queixas, dirigidas à mãe: não ter sido suficientemente amamentada; não ter recebido da mãe um pênis; ter sido submetida a dividir o amor materno com irmãos e irmãs; ter tido sua demanda ilimitada de amor frustrada; e, por fim, ter tido sua atividade sexual despertada e depois proibida (interdição da masturbação). Entretanto, todos esses motivos não convencem Freud de que isso seria suficiente para que a menina abandonasse a mãe. Conclui então dizendo, lindamente, que o amor infantil (...) não tem, na realidade, objetivo, sendo incapaz de obter satisfação completa (...) Talvez o fato real seja que a ligação à mãe está fadada a perecer, precisamente por ter sido a primeira e tão intensa (Freud, 1931, p. 242). 

A conclusão do autor causou-me inquietação: descrevendo a fase pré-edipiana como um período inevitável e fadado a perecer no curso da vida erótica da menina, Freud parece sugerir que tão inevitável quanto ela é o período do Édipo. Isso me pôs a refletir se as coisas são de fato assim na vida de toda menina neurótica, especialmente as que se tornam mulheres lésbicas ou bissexuais. Acima de tudo, a frase chegou-me como uma provocação: é provável que a vida erótica das mulheres esteja fundamentalmente composta pelos resíduos da relação original com suas mães. Essa ideia parece-me muito necessária para orientar a clínica psicanalítica das mulheres no século 21, já que estamos vivenciando um momento de debate fecundo e transformador sobre as questões de gênero, e de questionamento radical da compreensão da sexualidade centrada no falo.


Referências bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Sexualidade feminina. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006, pp. 233-248.

______. Conferência XXXIII - Feminilidade.  In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 2006, pp. 113-123 e 130.



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